O ano de 2016 provavelmente ficará marcado na vida de muitos, por diversos motivos. Para a Universidade de Oxford, instituição responsável pelo dicionário britânico – e importante referência para catalogação de novos vocábulos –, 2016 ficou marcado por uma palavra: pós-verdade.
O termo, definido como um adjetivo, tem o seguinte significado de acordo com Oxford: o que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais. Com o rebuscado modo inglês de linguagem de lado, a pós-verdade mostra o quanto mentiras ou opiniões podem se transformar no novo real.
Casper Grathwohl, presidente da Oxford Dictionaries – em entrevista ao jornal norte-americano The Washington Post, divulgado pelo Portal de Notícias Nexo –, deixa claro o poder da pós-verdade. “Dado que o uso do termo não mostrou nenhum sinal de desaceleração, eu não ficaria surpreso se pós-verdade se tornasse uma das palavras definidoras dos nossos tempos”, defende Grathwohl.
Você pode até achar esses três primeiros parágrafos um pouco sensacionalistas. “A verdade é fundamental para mim, ninguém jamais mudaria minha opinião com fatos falsos” pode ser uma frase que passa pela cabeça de alguns leitores. Contudo, lidar com a verdade é mais delicado do que parece e, se você usou esse raciocínio, pode significar que você já esteja significativamente atingido pela era da pós-verdade.
A pós-verdade na prática
No final de 2016, parte da população observava, assustada, uma nova forma de violência perante a parte mais vulnerável da sociedade: as crianças. Vídeos mostravam pessoas sob motocicletas que sequestravam, em plena luz do dia, garotinhas e garotinhos desacompanhados em algumas periferias do estado de São Paulo. Em pouco tempo, as forças de segurança traçaram uma ligação com crimes semelhantes que ocorriam no México, onde crianças tinham os órgãos vitais roubados para a venda ilegal em países ricos.
Ao mesmo tempo em que crianças inocentes tinham suas vidas colocadas em risco, o Congresso Nacional discutia a validade da permanência no cargo do novo presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, o deputado federal Rodrigo Maia. Isso porque Maia é chileno, fato que o impediria de ocupar um cargo público. Porém, essa discussão nem se compara a revolta de Renan Calheiros depois de ter sua caricatura veiculada pelo jornal francês Charlie Hebdo com a manchete: “Confirmado: a Suprema Corte do Brasil é uma m*”.
Não se preocupe, nenhuma dessas notícias é, ou foi, verdadeira. Todas elas têm em comum apenas a mentira e a publicação. Isso porque elas foram divulgadas em veículos de comunicação e em redes sociais, com fontes, imagens e opiniões que as deixaram com uma aparência verdadeira, mas era só impressão mesmo. Tais notícias, usadas como exemplo pelo jornalista André Miranda no portal O Globo, mostram o quanto a mentira pode se transformar em verdade e afetar diretamente a rotina da população.
Trump e a pós-verdade
A última campanha presidencial norte-americana evocou tantas emoções que a discussão ultrapassou os limites do solo estadunidense. Entre muitos argumentos radicais e trocas de acusações políticas, a pós-verdade foi a – verdadeira – vencedora, e para um mandato que durará mais de quatro anos. Pelo menos é o que defende o filósofo Renato Janine Ribeiro, em entrevista ao portal de notícias Uol: “A campanha de Donald Trump foi o maior exemplo de pós-verdade, com desdenho total pela veracidade dos fatos mencionados”.
A pós-verdade é uma coisa nova?
O mais surpreendente do uso de fatos inverídicos na campanha para a presidência foi o quanto a população e os veículos de mídia permaneciam apáticos perante as notícias falsa, escolhendo manchetes com citações absurdas, em detrimento da verdade por trás de tais informações. Janine explica a situação: “Essa tendência (da pós-verdade) traz um elemento triste. Não é apenas falar uma mentira. Ao dizer ‘pós’, é como se a verdade tivesse acabado e não importa mais. Essa é a diferença entre pós-verdade e todas as formas de manipulação das informações que tivemos antes. É a ideia de que teríamos deixado um tempo em que nos preocupamos com isso e passamos então a um tempo em que seria avançado relativizar ou mesmo desdenhar a verdade”.
Mentir, principalmente no meio político, não é uma novidade. Muito pelo contrário: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”, tal frase era o mantra do alemão Joseph Goebbels, chefe da propaganda e publicidade nazista. O que torna a pós-verdade nova é uma espécie de variação da veracidade dos fatos. Atualmente, a população tende a aceitar como verdade apenas a possibilidade de uma informação ser real. “Se antes havia verdade e mentira, agora temos verdade, meias verdades, mentira e afirmações que podem ser verdadeiras”, é o que defende o escritor norte-americano Ralph Keyes (em seu livro The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life), divulgado pelo jornalista Carlos Castilho no portal Observatório da Imprensa.
Como vencer a pós-verdade
Por mais que o significado esteja, cada vez mais, relativizado, ninguém gosta de ser enganado por mentiras. Por isso, uma verdadeira batalha se forma perante a pós-verdade. Grandes conglomerados de tecnologia já empenham força técnica máxima contra a propagação de notícias falsas na internet: como no caso do Facebook, que divulgou a tentativa de especificar seu algoritmo para limitar a ampla divulgação de informações levianas, ou permitir uma forma de denúncia das mesmas. O Google segue um caminho parecido.
Por parte da grande mídia, ficou a lição da importância da verdade perante toda notícia e não só a manchete do que um ou outro candidato afirmou. Em alguns casos, esse aprendizado está mais prático, como no site boatos.org, fundado pelo jornalista Edgard Matsuki, que reúne exemplos de informações amplamente divulgadas, mas que no fim são simples mentiras. Em entrevista ao jornal O Globo, Matsuki explica os riscos das falsas notícias: “O grande problema é que o mínimo de informação já pode influenciar alguém a formar uma opinião”.
Além das respostas mais instrumentais e do maior cuidado por parte da grande mídia, a principal solução para lidar com o problema da pós-verdade está nas mãos das pessoas. Uma consciência crítica e a maturidade para encarar uma informação – independente da vontade de que ela seja verdade ou não – estão entre as principais formas de lidar com a pós-verdade. Isso é o que explica o diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas da Universidade do Texas, Rosental Calmon Alves, nas aspas divulgadas pelo portal O Globo: “Passamos por uma crise momentânea, mas acredito que, aos poucos, as pessoas vão desenvolver um desconfiômetro para saber que não se pode acreditar em qualquer coisa”.
Texto por Ronayre Nunes Arte por Giulia Marcelino
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